sábado, 1 de janeiro de 2011

O vendedor de doces

Foi na adolescência que me encontrei com Machado de Assis. Fase difícil, mas a literatura foi um remédio para as crises existenciais, era um mundo novo ao meu alcance todas as vezes que a realidade ficasse sem graça. As letras passaram a ser minhas amigas e começaram além de me transportar, transformar e não foi só a minha professora de Português que notou que eu estava me tornando uma pessoa bem diferente. O primeiro romance que eu vivi foi Helena, na época que minhas amigas e eu colecionávamos histórias de amor na memória e em caderninhos de versos. Todas nós nos sentíamos a mocinha e quando o desfecho chegou, que mar de lágrimas! Mas em uma semana estávamos recuperadas, vivendo o amor de Capitulina. Aprendemos rápido a tomar cuidado com os homens, ficamos, todas, de mal dos meninos da classe que acusaram Capitu de alta traição. Das lágrimas, às gargalhadas, ao asco dos vermes que corroeram Brás, uma variedade de emoções. Depois que o alienista me apresentou a psiquiatria, nem achei tão dolorido meu psicotratamento!
Quando chegou o momento de escolher uma carreira, decisão ainda tomada muito cedo, resisti ao desejo de mergulhar também cientificamente no reino das palavras, inocente eu achava que diversão era uma coisa, trabalho outra. Porém, o coração falou mais alto, quando me dei conta, já estava me divertindo, numa classe, transmitindo aos adolescentes e jovens a mesma magia que me envolvera. Hoje a cada leitura, uma nova releitura humana das personagens fictícias e reais. A cada aula que chego pensando que conheço o velho Machado, sou surpreendida. É com fascínio que nós juntos, alunos-professor, aprendemos dia-a-dia a também viver as histórias fantásticas do maior gênio das palavras portuguesas no Brasil, o qual emprestou à ficção personagens e características inerentes a sua genialidade:
Cínico, humorista, irônico, sugestivo, sarcástico e mestre da observação psicológica, o criador dos olhos de ressaca afastou-se dos seus contemporâneos. Como arquiteto de personalidades tornou-se o melhor romancista brasileiro. Um autor que não ficaria preso a estilos de época, que queria ser lido e há mais de um século vem sendo, inspirando escritores, dramaturgos, atores, professores... Embora se atribua a ele destaque maior nos romances, os demais gêneros, que versou, não são menos significativos. Sua pena primou com semelhante esmero no conto e no teatro e na crônica e na crítica e no ensaio e na novela e na poesia. Se questionado como poeta, a musa Carolina, com certeza não vira outro poeta mais enamorado versificar a poesia romântica/parnasiano-realista.
Da mesma forma, quando nos voltamos para sua biografia e tentamos como ele fazer uma análise psicológica, além de seu talento com as palavras, podemos focalizar a história de superação, exemplo não só para os machadófilos. Numa sociedade casmurra, que mesmo 120 anos após a abolição não conseguiu abolir o preconceito, um mestiço do século XIX, pobre, epilético e ga-ga-gago, não teria muitas perspectivas, no entanto estamos falando de Machado de Assis, cujo engenho nato expresso num inabalável instinto de vitória, fez o menino da periferia, tirar até de uma relação com a madrasta, doces. Doces que levariam Machadinho à escola, não para estudar...
A vida exigir-lhe-ia o autodidatismo. Na adolescência publica poemas, aprende a tipografia, encontra-se com o romântico Manuel Antônio de Almeida que percebendo o precoce prodígio, futuro destaque da Literatura Universal, encoraja-o a superar o Hades dos Desencantos humanos, que bem conheceram. Ao lançar o primeiro romance, não foi por acaso o título Ressurreição. Era Machado de Assis cada vez se distanciando mais de Joaquim Maria, o que haveria de tratar de temas universais como a loucura, diferenças sociais, alma feminina, vaidade, sedução, casamento, adultério, através de uma linguagem de estilo inovado, com frases e capítulos curtos, retratando a vida coroada como um espetáculo.
Assim, ele tinha de se tornar um dos ilustres deuses de casaca, mas foi além, o primeiro presidente da ABL, consagrado ao cargo não pela idade, mas por que ali é sua casa, local onde deixou marcas no segundo andar, na cadeira José de Alencar, em quaisquer Relíquias da Casa Velha: literatura e Machado de Assis são como A Mão e a Luva e as páginas que escreveu não passam umas sobre as outras esquecidas apenas lidas, é o memorial, não apenas de Aires, e sim a escrita da alma sedenta da arte da palavra, divulgada e cultuada, até hoje, com seu incentivo. A marca temporal que ultrapassou Histórias sem Data e tornou-se clássica.
Portanto, se Cubas não transmitiu a nenhuma criatura o legado da sua miséria, Machado, pai de muitos Estácios, Estelas, Escobares, Borbas, Bentinhos, Beneditas, Palhas, Pedros e Paulos, deixou para a humanidade uma galeria de personagens imorredouras na mente de cada leitor com o qual compartilhou momentos únicos das Várias Histórias. E mesmo quando se foi a melhor parte de sua vida, a mulher protagonista do seu enredo particular, oh! “_ Tu, só Tu, Puro Amor!”, a razão de viver começa a deixá-lo. Uma vida que além de vivida fora sonhada a dois, dá vontade de pela eternidade continuar junto. Todavia se para o material há termo, a recíproca não é verdadeira para o amor real ou para as memórias talvez póstumas. Mesmo aos 100 anos de seu desaparecimento físico podemos afirmar: Machado de Assis não morreu, o óbito é desventura dos comuns, mas não de quem inventou a imortalidade (e isso não é um paradoxo). Conforme as mais sábias filosofias, a Machado a recompensa: as notáveis batatas!
A nós o privilégio de sermos em todo o tempo seus aprendizes na escola, na casa, na vida. Nunca deixaremos de viajar por suas narrativas, que serão sempre atuais. Que passem os anos, Machado de Assis não passa, permanece. Juventude e maturidade das gerações vindouras continuarão a se distrair, deleitar e enriquecer com sua arte, ainda que os livros virem e-books.

meu 2º texto premiado pela Academia Brasileira de Letras

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